Em dezembro de 2019, um novo coronavírus causou um grande surto de doença pulmonar na cidade de Wuhan, a capital da província de Hubei na China, e tem desde então se espalhado globalmente. O vírus eventualmente foi nomeado SARS-CoV-2, devido ao fato do seu genoma (constituído de RNA) ser ~82% idêntico ao coronavírus (SARS-CoV) responsável pelo SARS (síndrome respiratória aguda grave). Ambos os vírus pertencem ao clado b do gênero Betacoronavirus. A doença causada pelo SARS-CoV-2 é chamada COVID-19. Apesar dos casos de infecção inicialmente estarem conectados ao mercado de animais e alimentos marinhos de Wuhan, uma eficiente transmissão humano-para-humano levou ao crescimento exponencial do número de casos e a eventual declaração de uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
No momento dessa postagem, são mais de 794 mil casos confirmados no mundo, sendo cerca de 595 mil casos ativos, cerca de 161 mil casos recuperados (curados após tratamento/isolamento) e cerca de 38 mil casos fatais (óbitos), com uma taxa de mortalidade em torno de 4.8%, alcançando níveis alarmantes na Itália, e ainda mais alarmantes nos Estados Unidos. No geral, pacientes contraindo a forma severa da doença constituem aproximadamente 15% dos casos. Nenhum tratamento efetivo ainda existe para o COVID-19.
Em resposta, muitos centros de pesquisa - em Universidades e no setor industrial - estão correndo contra o tempo para o desenvolvimento de uma vacina e de medicamentos que possam prevenir ou tratar o COVID-19. Nesse último caso, um número de estudos vêm sendo publicados avaliando anti-virais já existentes no mercado para o tratamento de outras enfermidades e que podem também ser efetivos contra o SARS-CoV-2.
Nesse sentido, vem sendo amplamente divulgado nas redes sociais que medicamentos contendo as substâncias hidroxicloroquina e cloroquina - usados para o tratamento contra a malária, reumatismo, inflamação nas articulações, lúpus, entre outros - são eficientes para tratar o novo coronavírus. Isso fez com que a procura por esses medicamentos aumentasse de forma robusta não só aqui no Brasil como em outros países, ameaçando os estoques em farmácias e preocupando pacientes com outras doenças graves que precisam dessas drogas.
Mas quais as evidências científicas para essas duas substâncias? Vale a pena consumi-los em caso de infecção pelo SARS-CoV-2? Existem outros potenciais medicamentos para o tratamento do COVID-19?
HIDROXICLOROQUINA E CLOROQUINA
A cloroquina - um fármaco imunomodulante tradicionalmente usado para tratar malária e amebíase - tem sido usada amplamente ao redor do mundo por mais de 70 anos, e faz parte da lista de medicamentos essenciais da OMS. Além de barato, esse fármaco possui um perfil clínico de segurança bem estabelecido para certas doenças. Estudos clínicos preliminares in vivo e in vitro têm reportado que esse medicamento também parece ser efetivo em reduzir a replicação viral de um número de infecções, incluindo o coronavírus associado ao SARS e ao MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio).
No entanto, a eficácia e a segurança da cloroquina para o tratamento da pneumonia causada pelo SARS-CoV-2 permanecem inconclusivas. Estudos mais recentes in vitro sugerem que o fosfato de cloroquina é eficiente em inibir a infecção pelo SARS-CoV-2 in vitro (em células cultivadas fora de um sistema vivo) (Ref.2).
Uma revisão sistemática publicada esta semana no periódico Journal of Critical Care (Ref.3), analisando estudos clínicos na literatura acadêmica (PubMed e EMBASE) sobre o uso de cloroquina e formulações derivadas em pacientes com COVID-19, concluiu que existe suficiente e racional pré-clínica evidência em relação à efetividade da cloroquina para o tratamento dessa doença assim como evidência de relativa segurança no uso a longo prazo na prática clínica que justificam a pesquisa clínica sobre o tópico. Porém, os autores do estudo também reforçam que, no momento, o uso de cloroquina para o tratamento do COVID-19 precisa ser restrito somente a testes clínicos eticamente aprovados.
Sem robustos estudos in vivo, e falta de testes clínicos em um grande número de pacientes humanos, é mais do que arriscado recomendar o amplo uso de cloroquina para o tratamento de pacientes infectados pelo SARS-CoV-2, especialmente fora de um centro de saúde e sem acompanhamento médico dedicado. Os efeitos colaterais e interações com outros medicamentos precisam ser levados em conta, ou um grande número de pacientes infectados pode piorar o estado de saúde. Aliás, o uso acima do recomendado de cloroquina pode causar envenenamento agudo e morte - somando-se a outros possíveis e sérios efeitos colaterais listados na bula. Isso sem contar que aprovações de uso sem suficiente suporte científico pode fomentar uma maior demanda desnecessária - e consequente escassez de estoque - de um medicamento essencial para inúmeras pessoas, especialmente nas áreas tropicais fortemente afetadas pela malária.
Em uma carta ao editor, publicada no periódico Nature (Ref.4), pesquisadores Chineses também reportaram que o sulfato de hidroxicloroquina - um derivado da cloroquina que possui um grupo hidroxila (-OH) extra em sua estrutura molecular e primeiro sintetizado em 1946 - parece ser também efetivo para inibir a infecção pelo SARS-CoV-2, com base em experimentos in vitro. Usado para o tratamento de doenças auto-imunes como a artrite reumatoide e o lúpus, a hidroxicloroquina já demonstrou ser 40% menos tóxica do que a cloroquina em animais - apesar de também estar associada a sérios e frequentes efeitos colaterais, como distúrbios no ritmo cardíaco (Ref.14). Em combinação com sua função anti-inflamatória, a hidroxicloroquina possui potencial para combater o COVID-19.
Inclusive, em um estudo clínico publicado posteriormente no periódico International Journal of Antimicrobial Agents (Ref.13) e bastante divulgado, pesquisadores Franceses reportaram que a substância foi testada em um grupo pequeno de voluntários em Marselha, na França, gerando resultados mais do que positivos. No total, foram 26 pacientes (19 pacientes como controle) recebendo a hidroxicloroquina (600 mg diários) com ou sem o antibiótico azitromicina. Os autores reportaram presença zero do vírus na maioria (20 casos) tratada com a hidroxicloroquina após 6 dias de tratamento, sendo que na maioria não-tratada (controle) a infecção continuou. Além disso, a azitromicina mostrou otimizar a ação anti-viral da hidroxicloroquina.
Já um estudo clínico randomizado nos EUA iniciado em 11 de março de 2020 está avaliando a efetividade da hidroxicloroquina e também do antiviral combinado Lopinavir-Ritonavir para o tratamento de pacientes com COVID-19 (Ref.6).
OUTROS MEDICAMENTOS
Além da hidroxicloroquina e da cloroquina, existe limitada evidência de que o medicamento Remdesivir - uma pró-droga nucleosídea análoga desenvolvida pela Gilead Sciences (EUA) - pode ser usada de forma efetiva para o tratamento de pacientes com COVID-19. Um recente caso reporte mostrou que o tratamento com remdesivir melhorou a condição clínica do primeiro paciente infectado pelo SARS-CoV-2 nos EUA (Ref.5). Alguns estudos nas últimas décadas também sugerem que esse medicamento trouxe benefícios para o tratamento de SARS (2002) e de MERS (2012). Testes clínicos randomizados envolvendo centenas de pacientes estão sendo conduzidos para corroborar ou não essas evidências (Ref.6).
Outros medicamentos em similar situação - em combinação ou isolados - incluem o Lopinavir, o Sofosbuvir, o Ribavirina, corticosteroides e o Interferon alfaco-1 O lopinavir é um inibidor de protease usado no coquetel anti-HIV. O ritonavir é combinado com o lopinavir para aumentar seu tempo de meia-vida no plasma através da inibição do citocromo P450. No entanto, a OMS atualmente recomenda contra o uso rotineiro de corticosteroides em pacientes com SARS-CoV-2, com base em dados disponíveis sugerindo que esses medicamentos não estão associado com benefícios de sobrevivência e podem causar prejuízos à saúde; autoridades de saúde Chinesas concordam com a recomendação, alegando que o uso de corticosteroides é controverso nesse contexto.
Especialistas Sul-Coreanos com experiência em tratar pacientes infectados com o SARS-CoV-2 não recomendam o uso de medicamentos anti-virais hoje disponíveis para o tratamento de pacientes jovens, saudáveis e com sintomas leves da doença. Por outro lado, eles recomendam que o tratamento com lopinavir 400 mg, ritonavir 100 mg (2 tabletes via oral duas vezes por dia) ou cloroquina (500 mg via oral duas vezes ao dia) deveria ser considerado para o uso em pacientes mais velhos ou em pacientes com condições crônicas de saúde e graves sintomas - e tudo, claro, sob estrito acompanhamento médico e hospitalar. Se a cloroquina estivesse indisponível, a recomendação seria o uso de hidroxicloroquina (400 mg via oral duas vezes ao dia). Uso de ribavirina e interferon não seria recomendado como primeira linha de tratamento por causa do risco de sérios efeitos colaterais; no entanto, o uso desses medicamentos deveria ser considerado se o tratamento com lopinavir, ritonavir, cloroquina, ou hidroxicloroquina forem inefetivos. (Ref.7-8)
Porém, contudo, todavia, um estudo clínico randomizado publicado recentemente no periódico The New England of Medicine (Ref.9), analisando 199 pacientes infectados com o SARS-CoV-2, não encontrou benefícios terapêuticos significativos para o uso de Lopinavir–Ritonavir em comparação com o tratamento padrão. A mortalidade e o nível de RNA viral ao longo da hospitalização entre o grupo de controle e o grupo tratado com essas duas substâncias mostrou-se similar. Eventos adversos gastrointestinais foram mais comuns no grupo tratado com lopinavir-ritonavir, mas sérios eventos adversos foram mais comuns no grupo de controle. Por outro lado, o tratamento com lopinavir-ritonavir foi suspenso em 13 pacientes (13,8%) por causa de eventos adversos. Esse inclusive é um alerta para as pessoas que estão comprando e usando sem qualquer orientação médica medicamentos a base de hidroxicloroquina ou de cloroquina com base apenas em estudos preliminares ou especulações terapêuticas.
A OMS também anunciou um grande estudo clínico a nível global - o qual pode incluir milhares de pacientes em dezenas de países - para testar a eficácia de seis desses medicamentos (combinados ou isolados): Remdesivir, clroroquina, hidroxicloroquina, Ritonavir/lopinavir e Ritonavir/lopinavir + interferon beta (Ref.12). O estudo - chamado de 'SOLIDARITY' - vai ser acompanhado também por outro estudo clínico de larga escala similar coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisa Médica da França (INSERM) que pretende englobar 3200 pacientes oriundos de pelos menos 7 países, incluindo 800 da França.
INIBIDORES DE α-KETOAMIDAS
Um dos alvos terapêuticos melhor caracterizados entre os coronavírus é a protease principal (Mpro). Essa enzima é essencial para o processamento das poliproteínas que são traduzidas a partir do RNA viral. A inibição da atividade dessa enzima bloquearia a replicação viral, e considerando que nenhuma protease humana conhecida possui centros específicos de clivagem similares ao Mpro, inibidores são improváveis de serem tóxicos.
Em um estudo publicado essa semana na Science (Ref.10), pesquisadores conseguiram determinar a estrutura cristalina via raio-X, a uma resolução de 1,75 Å, do Mpro do SARS-CoV-2. A estrutura tridimensional mostrou-se altamente similar àquela do Mpro do SARS-CoV, como esperado considerando uma igual identidade de 96% do sequenciamento dessa proteína entre os dois vírus.
CONCLUSÃO
No momento, não existe nenhum tratamento medicamentoso aprovado ou comprovado cientificamente visando a infecção pelo SARS-CoV-2. Certos anti-virais e outros medicamentos com potencial terapêutico estão ainda sendo testados, mas as evidências científicas de suporte continuam fracas e oriundas de estudos in vitro e/ou de grupos muito limitados de pacientes. Além disso, existem resultados conflitantes para medicamentos como o Remdesivir e o Lopinavir. Para pacientes com sintomas leves e fora de grupos de risco, repouso, hidratação e boa alimentação durante o isolamento em casa são suficientes. E importante: esses medicamentos sendo testados, incluindo a hidroxicloroquina e a cloroquina, NÃO são para prevenção e, sim, possuem potencial terapêutico para ajudar a tratar o COVID-19. Ou seja, não devem ser usados em hipótese alguma sem a presença da doença.
Alias, esta semana a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu enquadrar a hidroxicloroquina e a cloroquina como medicamentos de controle especial (Ref.11). Segundo informações da Agência a procura por hidroxicloroquina aumentou depois das pesquisas já mencionadas indicarem que esse medicamento pode ser testado no tratamento do Sars-Cov-2.
"Apesar de promissores, não existem estudos conclusivos que comprovam o uso desses medicamentos para o tratamento da Covid-19. Assim, não há recomendação da Anvisa, no momento, para o uso em pacientes infectados ou mesmo como forma de prevenção à contaminação. Ressaltamos que a automedicação pode representar um grave risco à sua saúde." – Anvisa.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
- https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32145363/
- https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32173110/
- https://www.nature.com/articles/s41421-020-0156-0
- https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0007/988648/COVID-19-Drug-Therapy_Mar-2020.pdf
- https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04307693
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0024320520302253
- http://www.koreabiomed.com/news/articleView.html?idxno=7428
- https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2001282
- https://science.sciencemag.org/content/early/2020/03/19/science.abb3405
- http://portal.anvisa.gov.br/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/hidroxicloroquina-orientacao-aos-pacientes-e-farmacias/219201
- https://www.sciencemag.org/news/2020/03/who-launches-global-megatrial-four-most-promising-coronavirus-treatments
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920300996
- https://newsnetwork.mayoclinic.org/discussion/mayo-clinic-provides-urgent-guidance-approach-to-identify-patients-at-risk-of-drug-induced-sudden-cardiac-death-from-use-of-off-label-covid-19-treatments/