quinta-feira, 29 de novembro de 2018

‘A base de um cérebro saudável é a bondade, e pode-se treinar isso’ – Richard J. Davidson

Imagem de www.revistaprosaversoearte.com
Richard Davidson, PhD em neuropsicologia e pesquisador na área de neurociência afetiva
Nasci em Nova Iorque e moro em Madison, Wisconsin (EUA), onde sou professor de psicologia e psiquiatria na universidade. A política deve basear-se naquilo que nos une. Só assim poderemos reduzir o sofrimento no mundo. Acredito na gentileza, na ternura e na bondade, mas temos que nos treinar nisso.
Eu estava investigando os mecanismos cerebrais ligados à depressão e à ansiedade.
…E acabou fundando o Centro de Investigação de Mentes Saudáveis.
Quando eu estava no meu segundo ano na Universidade de Harvard, a meditação cruzou o meu caminho e fui para a Índia investigar como treinar a minha mente. Obviamente, meus professores disseram que eu estava ficando louco, mas aquela viagem marcou meu futuro.
…E assim que começam as grandes histórias.
Descobri que uma mente calma pode produzir bem-estar em qualquer tipo de situação. E quando me dediquei a investigar, por meio da neurociência, quais são as bases para as emoções, fiquei surpreso de ver como as estruturas do cérebro podem mudar em tão somente duas horas.
Em duas horas!
Hoje podemos medir com precisão. Levamos meditadores ao laboratório; e antes e depois da meditação, tiramos uma amostra de sangue deles para analisar a expressão dos genes.
E a expressão dos genes muda?
Sim. E vemos como as zonas com inflamação ou com tendência à inflamação tinham uma abrupta redução disso. Foram descobertas muito úteis para tratar a depressão. Contudo, em 1992, conheci o Dalai Lama e minha vida mudou.
Um homem muito encorajador.
“Admiro seu trabalho – ele me disse -, mas acho que você está muito centrado no estresse, na ansiedade e na depressão. Nunca pensou em focar suas pesquisas neurocientíficas na gentileza, na ternura e na compaixão?”.
Um enfoque sutil e radicalmente distinto.
Fiz a promessa ao Dalai Lama de que faria todo o possível para que a gentileza, a ternura e a compaixão estivessem no centro da pesquisa. Palavras jamais citadas em um estudo científico.
O que você descobriu?
Que há uma diferença substancial entre empatia e compaixão. A empatia é a capacidade de sentir o que sentem os demais. A compaixão é um estado superior. É ter o compromisso e as ferramentas para aliviar o sofrimento.
E o que isso tem a ver com o cérebro?
Os circuitos neurológicos que levam à empatia ou à compaixão são diferentes.
E a ternura?
Forma uma parte do circuito da compaixão. Umas das coisas mais importantes que descobri sobre a gentileza e a ternura é que se pode treiná-las em qualquer idade. Os estudos nos dizem que estimular a ternura em crianças e adolescentes, melhora os resultados acadêmicos, o bem-estar emocional e a saúde deles.
E como se treina isso?
Primeiro, levando a mente deles até uma pessoa próxima, que eles amam. Depois, pedimos que revivam um momento em que essa pessoa estava sofrendo e que cultivem o desejo de livrar essa pessoa do sofrimento. Logo, ampliamos o foco para pessoas não tão importantes e, por fim, para aquelas que os irritam. Estes exercícios reduzem substancialmente o bullying nas escolas.
Da meditação à ação há uma distância.
Umas das coisas mais interessantes que tenho visto nos circuitos neurais da compaixão é que a área motora do cérebro é ativada: a compaixão te capacita para agir, para aliviar o sofrimento.
Agora você pretende implementar no mundo o programa Healthy Minds (mentes saudáveis).
Esse foi outro desafio que o Dalai Lama me deu, e temos elaborado uma plataforma mundial para disseminá-lo. O programa tem quatro pilares: a atenção; o cuidado e a conexão com os outros; o contentamento de ser uma pessoa saudável (fechar-se nos próprios sentimentos e pensamentos é uma das causas da depressão)…
…É preciso estar aberto e exposto.
Sim. E, por último, ter um propósito na vida. Que é algo que está intrinsecamente relacionado ao bem-estar. Tenho visto que a base para um cérebro saudável é a bondade. E treinamos a bondade em um ambiente científico, algo que nunca tinha sido feito antes.
Como podemos aplicar esse treinamento em nível global?
Por meio de vários setores: educação, saúde, governo, empresas internacionais…
Por meio desses que têm potencializado este mundo de opressão em que vivemos?
Tem razão. Por isso, sou membro do conselho do Foro Econômico Mundial de Davos. Para convencer os líderes de que é preciso levar às pessoas o que a ciência sabe sobre o bem-estar.
E como convencê-los?
Por meio de provas científicas. Tenho mostrado a eles, por exemplo, o resultado de uma pesquisa que temos realizado em diversas culturas diferentes: se interagirmos com um bebê de seis meses usando fantoches, sendo que um deles se comporta de forma egoísta e o outro de forma amável e generosa, 99% dos bebês prefere o boneco que coopera.
Cooperação e amabilidade são inatas.
Sim, mas são frágeis. Se não são cultivadas, se perdem. Por isso, eu, que viajo muitíssimo (o que é uma fonte de estresse), aproveito os aeroportos para enviar mentalmente bons desejos a todos com quem cruzo no caminho, e isso muda a qualidade da experiência. O cérebro do outro percebe isso.
Em apensa um segundo, seguem o seu exemplo.
A vida é só uma sequência de momentos. Se encadearmos essas sequências, a vida muda.
Hoje, mindfulness (atenção plena) tornou-se um negócio.
Cultivar a gentileza é muito mais efetivo do que se centrar em si mesmo. São circuitos cerebrais distintos. A meditação em si não interessa para mim. O que me importa é como acessar os circuitos neurais para mudar o seu dia-a-dia, e sabemos como fazer isso.
Ciência e Gentileza
A pesquisa de Richard Davidson está centrada nas bases neuronais da emoção e nos métodos para promover, por meio da ciência, o florescimento humano, incluindo a meditação e as práticas contemplativas. Ele fundou e preside o Centro de Investigação de Mentes Saudáveis na Universidade de Wisconsin-Madison, onde são realizadas pesquisas interdisciplinares com rigor científico sobre as qualidades positivas da mente, como a gentileza e a compaixão. Richard Davidson já acumula prêmios importantes e é considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo, segundo a revista Time. É autor de uma quantidade imensa de pesquisas e tem vários livros publicados. Ele conduziu um seminário para estudos contemplativos em Barcelona.
Fonte e tradução: Tibet House Brasil – entrevista publicada originalmente no site La Vanguardia
FONTE: https://www.revistaprosaversoearte.com/a-base-de-um-cerebro-saudavel-e-a-bondade-e-pode-se-treinar-isso-richard-j-davidson/

domingo, 25 de novembro de 2018

Os cientistas dizem adeus à definição física do quilograma

O quilograma é agora baseado em uma constante física, não mais em um pedaço de metal. Por 129 anos o quilograma foi definido como o peso do Protótipo Internacional de Quilograma, um pequeno cilindro de platina-irídio armazenado em um cofre em Paris.

Entre coffee breaks e apresentações sobre física quântica, os cientistas votaram ontem (16) para a redefinição do quilograma, a unidade que sustenta o sistema mundial de pesos. Em vez de basear o valor do quilograma em um artefato físico, como tem sido o caso há mais de 100 anos, a unidade de medida agora será definida usando uma constante da natureza. O valor do quilograma, convenientemente, não mudará.

A votação foi feita há séculos, com os cientistas descrevendo-a como a maior revolução na medição desde a Revolução Francesa. Agora, dizem eles, o sistema métrico preencherá a ideologia orientadora da metrologia estabelecida naquele período: criar unidades de medida “Pour les temps, pour les peuples” – para todos os tempos e para todas as pessoas.

O uso de artefatos físicos tem sido um obstáculo para alcançar esse objetivo. Por 129 anos o quilograma foi definido como o peso do Protótipo Internacional de Quilograma (IPK, sigla para International Prototype Kilogram), um pequeno cilindro de platina-irídio armazenado em um cofre em Paris. Pequenas mudanças no peso do IPK (causadas por contaminação, alguns especulam) têm sido uma mancha na reputação do sistema métrico e uma ameaça a experimentos científicos que dependem de medições precisas.

Um cientista segurando uma cópia do Protótipo Internacional do Quilograma, que agora foi substituído. Crédito: NIST
Com a votação de ontem, esses problemas estão no passado. O quilograma agora é definido usando um cálculo baseado na Constante de Planck, denotada como h, que pode ser considerado a menor quantidade de energia possível. Juntamente com o quilograma, outras três unidades de medida também foram redefinidas: o ampere, o kelvin e mole, que agora estão oficialmente ligados a constantes da natureza.

O físico William Bill Philips, laureado com o Nobel em 1997, cujo trabalho sustenta as novas definições, disse aos delegados no histórica votação que, com a mudança, “agora você pode manter o sistema internacional de unidades em sua carteira”, embora seja necessário algum equipamento de laboratório para transformar essas definições em unidades reais.

A votação foi realizada pelo Bureau Internacional de Pesos e Medidas (Bureau international des poids et mesures ou BIPM), a agência que mantém o sistema métrico, perto de sua sede em Versalhes, na França. Para os cientistas, participar da ocasião era comemorativo, mas também com um pouco de tristeza. “Eu me sinto emocionado em enterrar o quilograma”, disse Stephan Schlamminger, físico do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST) dos EUA, ao The Verge. “Sinto-me nostálgico e triste de certa forma, mesmo sabendo que este novo sistema será melhor”.

Um cartão mostrando as novas definições das unidades do sistema métrico, o que é útil se você tiver um laboratório de alta tecnologia por perto. Crédito: James Vincent/The Verge
Klaus von Klitzing, outro ganhador do Nobel cujo trabalho desempenhou um papel fundamental na redefinição, ecoou esses sentimentos. “Hoje celebramos um funeral e um casamento ao mesmo tempo”, disse ele aos delegados no Palais des Congrès de Versailles. Mas os benefícios do novo sistema, ele disse, superaram amplamente qualquer conveniência em manter o antigo. A estase não é uma opção na metrologia, pois novos tipos de medições expandem o que podemos observar e apreender sobre o mundo.

“Se você está fazendo medições de alta precisão, você descobre novos territórios”, disse von Klitzing aos delegados, antes de rir e acrescentar: “Portanto, existe uma estreita conexão entre os vencedores do prêmio Nobel e a metrologia”.

A votação foi mais um evento diplomático que um evento científico, o que é apropriado, uma vez que o Tratado do Metro ou Convenção do Metro, que criou o BIPM em 1875, é um dos mais antigos acordos internacionais. Agora, as unidades métricas são as unidades oficiais de todas as nações da Terra, além da Libéria, Mianmar e dos Estados Unidos. (E até mesmo os Estados Unidos é métrico no seu cerne: tem suas próprias unidades, mas elas são definidas usando o sistema métrico.)

Jon Pratt, físico do NIST, mostra sua tatuagem com tema de metrologia. A tatuagem registra o selo original do BIPM (com uma estátua segurando um protótipo de metro e do quilograma), com a Constante de Planck escrita por baixo. Crédito: James Vincent/The Verge
Delegados de cerca de 60 nações participaram da votação, cada um responsável pela padronização das unidades em seu próprio país. Uma pergunta e uma folha de respostas foram dadas àqueles que atestaram alguns desses assuntos práticos, com perguntas como: “Eu vou ter meu padrão de massa calibrado sob o SI Revisado da mesma forma que eu faço agora?” A resposta: sim, com quilogramas de referência criados usando um dispositivo chamado de saldo de Kibble.

Willie May, ex-diretor do NIST, disse que chegar a esse ponto foi cansativo, exigindo anos de debates internacionais. “Toda vez que você tem que ter um monte de gente concordando em qualquer coisa, vai ser um processo longo, tedioso e delicado”, disse May. Mas a recompensa mais do que valeu a pena, ele disse. “É algo que precisa ser feito.”



Sem um sistema unificado de unidades consistentes, o comércio é difícil e a pesquisa científica é quase impossível. A redefinição sustenta essa troca de bens e informações no futuro, e apoiará o desenvolvimento de novas tecnologias que exigem medições precisas, como construir microchips para computadores quânticos ou medicamentos adaptados ao genoma de um indivíduo. Mesmo nesta conferência, os delegados estavam discutindo novas fronteiras, incluindo melhores medidas para respostas biológicas a medicamentos e produtos farmacêuticos.

Os delegados aplaudem após a votação final para aceitar as novas definições. Crédito: James Vincent / The Verge
Martin Milton, diretor do BIPM, disse estar satisfeito com o resultado. “A sensação é de que os planos funcionaram”, disse Milton ao The Verge. “Somos a organização internacional de metrologia e nosso trabalho é coordenar o esforço internacional. Para mim, o sucesso é quando nossos estados membros acharem que é um sucesso”.

Para os metrologistas, a redefinição também ofereceu uma experiência anteriormente desconhecida: um lugar no centro das atenções. “Isso é algo que os metrologistas não estão acostumados”, disse May. “Trabalhamos nos remansos dos reinos de Geekdom e agora temos o mundo inteiro para ver o que conseguimos… Sinceramente não tenho palavras para descrever como está sendo hoje.”

Mas essa é a natureza da metrologia. É uma disciplina que permite muito, mas, se o trabalho é feito corretamente, passa quase completamente despercebido. Assim como a redefinição do quilograma, o objetivo não foi mudar nada, mas simplesmente colocá-lo em bases mais sólidas — aquelas que, esperamos, apoiarão a civilização por muito tempo ainda. [The Verge]

FONTE: http://socientifica.com.br/2018/11/os-cientistas-dizem-adeus-definicao-fisica-do-quilograma/

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Sirius: As mentes por trás do maior acelerador de partículas do Brasil

Poucas pessoas que observam a estrutura gigante erguida em uma área rural de Campinas, a 93 km de São Paulo, fazem ideia do que se trata. A construção circular e envidraçada lembra um shopping center ou as novas arenas de futebol brasileiras. Nem mesmo alguns funcionários do local sabem explicar o que é o Projeto Sirius, obra do governo federal estimada em R$ 1,8 bilhão.

Prédio do Projeto Sirius
Prédio semelhante a uma arena de futebol, orçado em R$ 1,8 bilhão, é a maior construção científica já feita no Brasil (imagem de https://www.bbc.com)
"Até já me falaram, mas eu não sei te dizer. É melhor você perguntar para um cientista", disse um operador de empilhadeira à reportagem da BBC News Brasil.

O Sirius, construído e mantido pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), será a maior e mais avançada fonte de luz síncrotron, um tipo de radiação eletromagnética de alto fluxo e alto brilho produzida quando partículas carregadas, aceleradas a velocidades próximas à velocidade da luz, têm sua trajetória desviada por campos magnéticos.

Mas por que isso é tão importante e custa tão caro? De maneira simplificada, o Sirius, único no mundo, é um ultra-aparelho de radiografia que será capaz de analisar de forma detalhada a estrutura e o funcionamento de estruturas micro e nanoscópias, como nanopartículas, átomos, moléculas e vírus.

É como se os pesquisadores pudessem tirar um raio-x em três dimensões, e em movimento, de materiais e partículas extremamente pequenas e densas, como pedaços de aço e rocha, e até de neurônios. O aparelho será capaz de analisar os detalhes e funcionamento dos materiais de forma inédita.
Quem são as mentes por trás da maior e mais complexa infraestrutura científica do Brasil
Isso pode levar, por exemplo, à criação de uma bateria para celular que, quando carregada apenas uma vez, dure cinco anos.

Será possível desenvolver também plantas que necessitem de menos água para crescer e novos remédios para tratar doenças crônicas.

Tudo graças a um brilho superpotente produzido pela circulação de elétrons na velocidade da luz (cerca de 300 mil km/s). Isso possibilita que pesquisadores estudem até mesmo neurônios de seres vivos de maneira inédita, sem precisar "fatiá-los", como é feito hoje. Por isso, o aparelho é tido como a grande aposta científica brasileira para as próximas décadas.

Hoje, o Brasil tem um acelerador de partículas chamado UVX que, segundo cientistas, já está defasado. O UVX também fica no CNPEM, no terreno ao lado do Sirius. A inovação no novo acelerador será expressiva: um processo que hoje demora horas para ser feito no UVX, por exemplo, será feito em poucos segundos no Sirius.
Liu Lin com a mãe e o irmão mais novoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionLiu Lin (à esq.) com a mãe e o irmão mais novo quando deixaram a China para morar no Brasil
Para a construção bem-sucedida do Sirius, dezenas de cientistas e engenheiros estão há décadas dedicados ao desenvolvimento de fontes de luz do tipo síncrotron, que têm dimensões colossais, mas exigem uma precisão milimétrica.
Um deles é a chinesa Liu Lin, de 54 anos, que nasceu em Hong Kong e veio para o Brasil aos 2 anos de idade. Como cientista, ela se dedica há 33 anos ao desenvolvimento dos aceleradores de partículas brasileiros.
"Eu comecei nesse projeto antes mesmo de ele ser criado. O Brasil queria construir um síncrotron e eu viajei com a primeira equipe formada por quatro brasileiros em 1985 para Stanford, nos EUA (para estudar o acelerador americano)", conta à BBC News Brasil.
No ano seguinte, os cientistas começaram a projetar o primeiro acelerador brasileiro em uma sala na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Depois, ele foi transferido para uma casa e passou para um galpão, onde começaram a ser construídos os componentes do acelerador do UVX, do tamanho de um ginásio esportivo, onde atualmente trabalham centenas de pessoas, entre cientistas, engenheiros, técnicos e funcionários administrativos.
Liu Lin com cientistas brasileirosDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionLiu Lin ao lado de outros cientistas brasileiros durante visita a acelerador de partículas nos EUA
Lin tinha 22 anos e era a única mulher na equipe que foi aos Estados Unidos em 1985.
"A gente ficou três meses lá, aprendemos bastante e, quando a gente voltou, o projeto ficou indefinido. Não sabíamos se teria mesmo". A pesquisadora terminou o mestrado, ganhou um bolsa para fazer doutorado nos EUA e já estava com passagem comprada quando foi anunciada a decisão de que fariam um acelerador em Campinas.
"Eu fiquei num dilema. Acabei optando por ficar no projeto e fiz meu doutorado na USP", lembra.
A família dela não concordou com a decisão e achou que ela deveria ter ido estudar no exterior. Lin diz que não se arrepende.
Liu Lin dentro do atual síncrotron brasileiro, o UVXDireito de imagemFELIX LIMA/BBC NEWS BRASIL
Image caption'É como se você passasse da TV antiga de tubo para uma ultra HD 4K', explica cientista sobre inauguração do Sirius
"Eu acho que tomei a decisão correta. Aqui, a gente aprendeu muito fazendo. Foi diferente de uma carreira acadêmica normal", diz ela, que hoje é a líder do Grupo de Física de Aceleradores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), um dos quatro laboratórios nacionais do CNPEM.
O UVX, atual acelerador de partículas em funcionamento no Brasil, já está defasado e é classificado como um aparelho de segunda geração. O Sirius será o segundo do mundo de 4ª geração, mas será o mais moderno por diversos fatores, principalmente por emitir luz com o brilho mais intenso e capacidade superior de análise.
Prédio do Sirius, construído em área rural de Campinas, no interior de São PauloDireito de imagemFELIX LIMA/BBC NEWS BRASIL
Image captionSirius é capaz de fazer uma radiografia detalhada de estruturas micro e nanoscópias, como nanopartículas, átomos, moléculas e vírus

Bolsista e filho de caminhoneiro

Além de Liu Lin, o Projeto Sirius envolve outras dezenas de físicos e engenheiros de diversas áreas. Tamanho esforço é feito para que os cientistas e pesquisadores possam trabalhar sem problemas nas saídas das linhas de luz.
Narcizo Marques de Souza Neto na infância em Campina GrandeDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNarcizo Neto estudou parte de sua vida em escolas públicas em Campina Grande
Um deles é o paraibano Narcizo Marques de Souza Neto, de 40 anos, que trabalha com experimentos de raio-x em condições extremas de pressão e temperatura. Nascido na cidade de Malta, de 5 mil habitantes, ele conheceu o CNPEM em 2001, quando foi selecionado para um programa de bolsa de verão e viajou de avião pela primeira vez.
Depois de conhecer Campinas, ele fez mestrado e doutorado na Unicamp e pós-doutorado em Chicago, nos EUA, onde morou durante três anos. Lá, ele desenvolvia uma técnica para testar materiais sob alta pressão, quando recebeu uma proposta para trabalhar como pesquisador na fonte de luz síncrotron americana.
Narcizo Neto (à dir.) com amigos na UFCGDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNarcizo Neto (à dir.) fez parte da primeira turma de física da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba
Mesmo com um salário maior nos EUA, ele preferiu voltar para o Brasil para colaborar na formação de cientistas do país e fugir do frio. A construção do Sirius também foi um fator decisivo na sua escolha, já que ele poderá fazer seus estudos no melhor aparelho do mundo, de acordo com o que dizem os cientistas.
Uma das possíveis aplicações das pesquisas de Neto no Sirius é no desenvolvimento de trens de alta velocidade. Outra possibilidade seria desenvolver baterias e dispositivos eletrônicos com baixíssimo consumo de energia. "Você pode pensar que, daqui 50 anos, por exemplo, você teria um celular cuja bateria carregada apenas uma vez durasse dez anos", afirma.
Narcizo Marques de Souza Neto recebendo prêmio Dale Sayers Award, na AlemanhaDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNarcizo foi o primeiro pesquisador da América Latina a ganhar o prêmio Dale Sayers Award, da Sociedade Internacional de Absorção de Raios-x
Hoje, ele já faz seus estudos no UVX, mas diz que suas condições de trabalho vão melhorar significativamente quando o Sirius estiver pronto. A intensidade de luz que ele usa vai aumentar em mais de mil vezes e com um feixe de luz mil vezes menor, o que possibilita um sinal com baixíssimo ruído e um estudo mais preciso.
No novo acelerador de partículas, o pesquisador paraibano ainda poderá testar materiais sob uma pressão semelhante à encontrada no núcleo de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar.
"O Sirius será o primeiro laboratório no mundo a atingir essas condições. Em alguns lugares do mundo, já é possível chegar à (pressão) do centro da Terra, mas a de Júpiter é pelo menos cinco vezes maior", explica.
Em 2015, Neto foi o primeiro pesquisador da América Latina a ganhar o Dale Sayers Award da Sociedade Internacional de Absorção de Raios X (IXAS, por sua sigla em inglês). Esse é considerado um dos mais importantes prêmios na área de espectroscopia por absorção de raios-x (XAS).
De acordo com a instituição, ele foi premiado devido a suas "contribuições para o desenvolvimento de XAS para estudos de matéria sob condições extremas".

Fabricava os próprios brinquedos

Mas suas condições de estudo nem sempre foram boas. Na infância, o físico estudou em escola pública durante alguns anos e tinha poucos brinquedos para se divertir em casa. O mais importante, lembra ele, era ter uma imaginação fértil.
Narcizo Neto fazendo experimento em baixas temperaturasDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionNa infância, Narcizo Neto inventava seus próprios brinquedos com pedaços de madeira
"Eu inventava brinquedos. Usava pedaços de madeira para construir um carrinho, juntava um monte e imaginava que era um volante, uma marcha. Eu poderia ficar num canto brincando com pedras e madeiras e imaginar que era um brinquedo", conta Neto.
Estudar nem sempre foi fácil para Neto. Filho de um caminhoneiro e uma dona de casa, seus pais passaram por "sérias dificuldades" para pagar as mensalidades de sua escola e as cartas de cobrança do colégio chegavam com frequência à sua casa. Mesmo quando chegou à universidade, não sonhava em trabalhar num laboratório tão importante.
"Meu sonho era ser professor na Universidade Federal de Campina Grande. Hoje, mesmo distante, eu consigo colaborar com o pessoal de lá. Neste ano, um mestre se formou com a minha orientação, por exemplo", conta ele à BBC News Brasil.
O pesquisador ainda se orgulha ao falar que não se arrepende de ter voltado ao Brasil e que hoje seus amigos pesquisadores americanos tratam o Sirius como uma referência a ser estudada e alcançada.
Narcizo Neto no atual gerador de luz síncrotron brasileiro, o UVXDireito de imagemFELIX LIMA/BBC NEWS BRASIL
Image captionPesquisador recusou proposta para trabalhar no acelerador de partículas em Michigan para voltar ao Brasil
A mãe de Neto morreu, mas ele diz que seu pai está muito orgulhoso de sua profissão. "Com 82 anos, ele viajou pela primeira vez de avião para visitar o neto aqui (em Campinas). Tudo o que ele queria em relação à educação funcionou e deu frutos."

Como funciona o Sirius?

Localizado em um terreno de 150 mil m² - o equivalente a sete campos de futebol - o túnel principal por onde os elétrons circulam tem 518 metros.
A circulação constante das micropartículas é importante para gerar o feixe de luz síncrotron 24 horas por dia. Seu piso é feito de uma camada de 90 centímetros de concreto armado em cima de uma camada de quatro metros de terra compactada com cimento, e sob 13 estacas fincadas a 13 metros de profundidade no solo.
A área ainda é isolada do prédio principal por um vão para evitar vibrações externas.
Arte mostra funcionamento do Sirius
A reportagem da BBC News Brasil visitou as instalações do Sirius, inclusive a área onde os elétrons vão circular em alta velocidade.
Um desnível de 0,5 centímetro nos mais de 500 metros de túnel pode desregular toda a circulação dos elétrons e interromper o funcionamento do Sirius, previsto para operar 24 horas. As paredes do túnel têm uma espessura entre 80 centímetros e 1,2 metro para impedir a propagação da radiação emitida durante a circulação dos elétrons.
Mas todo o processo começa numa sala ao lado desse corredor de concreto e encanamentos. Uma máquina gera os elétrons, que são acelerados por um conjunto de equipamentos até ele ser transferido para um segundo acelerador.
Máquina que geram os elétrons do SiriusDireito de imagemFELIPE SOUZA/BBC NEWS BRASIL
Image captionMáquina responsável por gerar elétrons, que são acelerados até atingirem a velocidade da luz e formar a luz síncrotron
A ideia é "arrumar" os elétrons antes de eles serem desviados para o acelerador principal, onde são guiados por forças magnéticas geradas por centenas de ímãs que os fazem atingir a energia final de operação.
Ao longo desses 518 metros, os ímãs de alta precisão são posicionados de maneira a pressionar os elétrons para que eles fiquem cada vez mais concentrados.
Isso faz com que o feixe de luz que sai do acelerador de partículas, chamado de luz síncrotron, seja extremamente fino. Um fio de cabelo é 30 vezes mais espesso.
Sala onde os elétrons são gerados e acelerados pela primeira vezDireito de imagemFELIPE SOUZA/BBC NEWS BRASIL
Image captionPrimeira sala onde os elétrons são acelerados antes de serem guiados para o acelerador principal do Sirius
Esse processo, aliado à circulação de elétrons a quase 300 mil km/s, gera uma luz tão potente que é capaz de fazer uma radiografia detalhada até mesmo de um pedaço de rocha. Mas a precisão exigida na região do túnel é tão rígida que a temperatura do local não pode variar mais de 0,1ºC para mais ou menos.

Quando fica pronto?

A conclusão da montagem dos aceleradores do Sirius está prevista para o final de 2018 e o início da operação, para 2019. Já a conclusão do projeto, incluindo 13 estações de pesquisa, é previsto para 2020.
Sua estrutura, porém, tem capacidade para abrigar até 40 saídas de linhas de luz. Cada uma delas com um feixe de radiação eletromagnética específico, como raio-x e ultravioleta. Cada um possibilita o desenvolvimento de estudos em diferentes condições.
O Sirius foi erguido com apenas 15% de peças e mão-de-obra trazidos de outros países. Algumas empresas brasileiras inclusive investiram em pesquisa para produzir alguns componentes. Os ímãs, por exemplo, foram desenvolvidos e construídos pela empresa WEG, de Santa Catarina, especificamente para o Sirius.
Outras 280 empresas nacionais estão envolvidas no fornecimento de peças e componentes.

Qual a importância do Sirius para o Brasil?

Com a inauguração do Sirius, o Brasil terá uma das mais avançadas ferramentas de pesquisa do mundo, segundo cientistas. Isso possibilitará que os pesquisadores do país possam desenvolver estudos com tecnologia inédita em diversas áreas, como saúde, energia, tecnologia, agricultura e meio ambiente.
Área externa do SiriusDireito de imagemFELIPE SOUZA/BBC NEWS BRASIL
Image captionProjeto Sirius possibilitará que cientistas desenvolvam estudos com tecnologia inédita em diversas áreas, como saúde, energia, tecnologia, agricultura e meio ambiente
Na saúde, poderão ser estudados vírus e bactérias para a descoberta de substâncias com potencial para dar origem a novos medicamentos e tratamentos. O diretor-geral do CNPEM e diretor do Projeto Sirius, Antônio José Roque da Silva, explica que o cérebro poderá ser analisado de acordo com os estímulos que recebe ou doenças que possui.
"(Será possível) entender doenças degenerativas ou problemas ligados ao cérebro. Para isso, eu preciso entender desde a escala de comunicação entre os neurônios, onde eles trocam os neurotransmissores, até chegar à organização espacial deles, como eles estão arrumados no cérebro e ver a diferença de um cérebro normal para um com doença", afirma Silva.
Diretor do Projeto Sirius, Antônio José Roque da SilvaDireito de imagemFELIX LIMA/BBC NEWS BRASIL
Image captionDiretor do Sirius diz que fonte de luz síncrotron foi projetada para ser uma ferramenta na fronteira do conhecimento
No setor alimentício, poderão ser pesquisados alimentos e suas propriedades, visando o melhoramento, além do estudo de sementes e outras estruturas vegetais. Isso pode resultar no desenvolvimento de espécies mais resistentes à falta d'água e ataques de pragas.
Tudo isso por causa da qualidade e da potência do brilho da luz que sai nas estações. A física Liu Lin diz que é como se você conseguisse enxergar as micropartículas em sua constituição mais básica.
"É como se você passasse da TV antiga de tubo para uma ultra HD 4K. Fora que a luz produzida lá vai ter um grau de coerência maior. É como se você comparasse usar uma lanterna a um laser. É uma luz muito mais concentrada que faz toda a diferença", afirma Lin.
Uma ferramenta tão moderna deve atrair pesquisadores estrangeiros para o Brasil. Como o Sirius é financiado por recursos públicos, qualquer cientista pode apresentar um projeto de pesquisa e, se aprovado, usar o acelerador de partículas brasileiro.
Região externa do túnel principal do SiriusDireito de imagemFELIPE SOUZA/BBC NEWS BRASIL
Image captionÁrea do Sirius onde as linhas de luz síncrotron sairão e serão construídas as estações de pesquisa
O diretor do Sirius diz que ele foi projetado para ser uma ferramenta na fronteira do conhecimento. Nas palavras dele, com o "que há de mais moderno do mundo, com tecnologia brasileira, feito por pesquisadores brasileiros, ajudando a sociedade brasileira a resolver suas questões de futuro".
"Em pesquisa, é como se você estivesse andando por uma região com vales e morros. Dependendo do tipo de pergunta que você encontra, é como se você estivesse numa área com uma rugosidade pequena e conseguisse passar por ela a pé ou com um carro pequeno. Mas tem horas que eu vou me deparar com um grande vale. Nesse momento, ou eu tenho uma ponte para cruzá-lo, ou fico parado. O Sirius será essa grande ponte dos pesquisadores brasileiros", explica o diretor do projeto.







Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45335690?ocid=socialflow_facebook