O foco do nosso processo de ensino e aprendizagem ainda recai demais na memorização de informações. Educadora questiona se essa regra deve ser mantida, ou se devemos usá-la apenas em casos específicos.
Por: Vera Rita da Costa
O caráter enciclopédico de nosso ensino pode acabar afastando os estudantes do interesse e da busca pelo conhecimento. Qual o objetivo de decorar, por exemplo, os afluentes do rio Amazonas ou as fases da mitose? (foto: Freeimages/ Picaland) |
Uma das grandes lástimas do ensino é o caráter enciclopédico e decorativo que ele pode assumir. E também o desgosto e o desânimo que isso pode causar, afastando por longo tempo, talvez por uma vida toda, a pessoa da busca e do mundo fascinante que leva ao conhecimento.
Lembre-se do seu tempo de escola. Certamente você tem um caso para contar. Muito provavelmente, foi obrigado a decorar, em geografia, os afluentes da margem direita e esquerda do rio Amazonas ou, em língua portuguesa, as preposições essenciais. Em última instância, caso não tenha caído em nenhuma das ciladas, não deve ter se livrado da ‘sagrada tabuada’, que precisava ‘estar na ponta da língua’.
No meu caso, por exemplo, fui vítima de todas elas. Sei de cor os afluentes da margem direita (Javari, Jutaí, Juruá, Madeira...) e esquerda (Negro, Jari, Paru...) do rio Amazonas. Sei também as preposições essenciais (a, ante, até, após, com, contra ...) e a tabuada completa, inclusive a do nove. Mas, nenhuma dessas ‘decorações’ me incomoda tanto como ter sido induzida a memorizar a tabela periódica.
Isso mesmo! Você pode não acreditar, mas fui levada a isso por um professor de química do ensino médio que achava fundamental ter 'na ponta da língua’ a sequência dos grupos (metais alcalinos; alcalinos terrosos, de transição...), bem como memorizar a posição e os respectivos números atômicos de cada elemento. “A tabela periódica – dizia ele – é a tabuada da química e tem que estar decoradinha como ela.”
Tabela e tabuada
Não sou tão velha assim. Isso ocorreu há cerca de 30 anos e, no passo em que as coisas andam em educação, imagino que isso ainda possa acontecer em nosso vasto e diversificado sistema de ensino. Se não com a química, talvez com outras disciplinas. Se não com temas como a tabela periódica, talvez com alguns tidos como mais atuais.
Em biologia, por exemplo, sei que ainda se manda (ou se aconselha – esse termo é melhor para os tempos modernos) os alunos decorarem a sequência das fases da mitose (prófase, metáfase, anáfase e telófase) com a famosa frase mnemônica: “prometa à Ana telefonar”.
Ou seja, fico aqui martelando os meus pensamentos e refletindo sobre o fato de que as coisas podem estar mais amenas ou mais ‘pedagogicamente corretas’ em nossa educação formal, mas que decorar ainda está muito presente em nossas escolas.
O foco do nosso processo de ensino e aprendizagem ainda recai demais na assimilação e memorização de informações. As questões que coloco sobre isso são: deveria ser mesmo assim ou, pelo menos, em que casos isso ainda deveria acontecer?
Memorizar a sequência dos grupos, a posição e os números atômicos de cada elemento da tabela periódica pode ser contraproducente. Mais importante do que assimilar informações é aprender a lidar com elas. (imagem: Wikimedia Commons)
Talvez se justifique, por exemplo, saber a tabuada de cor, pois não é sempre que temos à mão uma calculadora (fato que, no entanto, está mudando com a invenção do telefone celular e seus aplicativos). Além disso, sempre é bom saber fazer ‘contas de cabeça’, sobretudo para quem vive em meio urbano, em que as relações de consumo regem praticamente todas as situações diárias.
Mas o que dizer de saber de cor os afluentes da margem direita e esquerda do Amazonas, as preposições essenciais, as fases da mitose e a própria tabela periódica? Não parece um exagero injustificável? Em relação a esses temas, tenho minhas dúvidas. Não que eles não sejam interessantes ou que não devam estar presentes em nossas aulas. Ao contrário, sobre muitos desses temas precisamos ter informações, saber discutir e até opinar.
Qual o critério?
Sobre a geografia do Amazonas, por exemplo, é necessário saber em detalhe as características da bacia hidrográfica amazônica para se compreender e opinar adequadamente sobre os projetos hidrelétricos que se pretende realizar lá. Sobre a mitose, também: quanto mais se conhecer sobre esse processo de divisão celular, inclusive as fases e a sequência de mecanismos associados a ele, melhor se compreenderá o que é o câncer, como ele se espalha pelo corpo e como agem as terapias que o combatem. O mesmo vale para os elementos químicos e a tabela periódica em si.
Não me parece justo, portanto, julgar os temas de conhecimento e tentar decidir se são mais ou menos válidos, mais ou menos úteis. A questão central está mais na forma como ensinamos e aprendemos esses temas e, principalmente, no que desejamos para a educação de nossos filhos e alunos. Queremos que eles apenas assimilem informações ou, mais que isso, que também a compreendam e saibam lidar com ela?
Há um degrau significativo que separa ter informação (ser bem informado) e ter conhecimento (saber usar a informação e ser conhecedor, de fato, das coisas). Mas, em nosso dia a dia atribulado, nem sempre nos damos conta disso e é comum que acabemos valorizando, induzindo e, em algumas situações mais graves, cobrando e avaliando nossos filhos e alunos pelo que não é o mais importante.
Meu professor de química do ensino médio, por exemplo, esqueceu-se de contar a incrível história de construção da tabela periódica; de usar a história de Dmitri Mendeleiev (1834-1907) como exemplo para transmitir uma vívida sensação de como se age em ciência ou, ainda, de exemplificar com esse caso como a obtenção de dados, sua organização e sistematização são valiosas ferramentas na busca pelo conhecimento, podendo levar a sínteses brilhantes, a previsões e a novas descobertas científicas. Isso poderia ter me animado em relação à química.
Mas, embora sério e dedicado, meu professor de química se preocupou, sobretudo, com que assimilássemos a informação literal que se encontra na tabela periódica e nos incentivou a decorá-la sem qualquer compreensão de nível um pouco mais avançado. Mesmo sem o querer, restringiu, assim, o foco de seu ensino (e da minha aprendizagem) a uma visão medíocre da química, e fez com que, durante muito tempo, cada pequeno quadradinho da tabela periódica se apresentasse para mim como nada mais que a representação de um elemento químico – seu símbolo, nome e peso atômico –, sem qualquer relação com o que estava por traz da tabela, o mundo vívido da química.
Hoje não precisa ser mais assim. A informação está amplamente disponível e temos recursos muito bacanas para acessá-la.
Dê uma olhada, por exemplo, na tabela periódica interativa que a fundação Technology, Entertainment, Design (TED), por meio de sua área voltada à educação, a TED-Ed, acaba de disponibilizar na internet. Nela, cada pequeno quadradinho da tabela periódica abre-se, como uma janela, para vídeos sobre cada um dos elementos. São 118 vídeos. Informação e explicações à beça.
Se meu professor de química fosse vivo, o que pensaria sobre isso? O que diria sobre o ensino? Insistiria em que a tabela periódica é a “tabuada da química” e precisa ser decorada ou me ajudaria a descobrir seus mistérios?
Como era um professor interessado, imagino que tomaria o segundo caminho. Acho que se debruçaria sobre a tabela periódica comigo e me auxiliaria a pensar sobre ela, fazendo relações que hoje, justamente porque perdi tempo na adolescência decorando a própria tabela, além dos afluentes das margens do rio Amazonas, nem suspeito que existam.
FONTE: http://cienciahoje.uol.com.br/alo-professor/intervalo/2014/10/o-dilema-da-decoreba
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